Da Pintura ao Texto

OS FUZILAMENTOS DO TRÊS DE MAIO de FRANCISCO GOYA

                                                    https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/o-3-de-maio-de-1808-em-madri-francisco-de-goya/

Este quadro que se encontra no Museu do Prado (que podes visitar aqui), em Madrid, foi pintado, em 1814,  na sequência da repressão sofrida pelos espanhóis quando se revoltaram, a 3 de maio de 1808, contra a invasão napoleónica.

O mesmo deu origem ao poema de Jorge de Sena Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, escrito em 1959 e transcrito a seguir, que te convido a ler, enquanto ouves a declamação feita por Mário Viegas.


Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso
É possível, por tudo é possível
Que ele seja aquele que eu desejo para vós
Um simples mundo onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
De nada haver que não seja simples e natural
Um mundo em que tudo seja permitido

Conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer
O vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós
E é possível que não seja isto
Nem seja sequer isto o que vos interesse para viver
Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar
Por quanto nos pareça a liberdade e a justiça

Ou mais que qualquer delas
Uma fiel dedicação à honra de estar vivo
Um dia sabereis que mais que a humanidade
Não tem conta o número dos que pensaram assim
Amaram o seu semelhante no que ele tinha de único
De insólito, de livre, de diferente

E foram sacrificados, torturados, espancados
E entregues hipocritamente à secular justiça
Para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue"
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento
A uma pátria, uma esperança
Ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas

Foram estripados, esfolados, queimados, gaseados
E os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido
Ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória
Às vezes, por serem de uma raça
Outras por serem de uma classe
Expiaram todos os erros que não tinham cometido

Ou não tinham consciência de haver cometido
Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer
Aniquilando mansamente, delicadamente
Por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror

Foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
Há mais de um século e que por violenta e injusta
Ofendeu o coração de um pintor chamado Goya
Que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor
Mas isto nada é, meus filhos
Apenas um episódio, um episódio breve

Nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
De ferro e de suor e sangue e algum sêmen
A caminho do mundo que vos sonho
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
Vale mais do que uma vida ou a alegria de tela
É isto o que mais importa, essa alegria

Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto
Não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo
E sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre
Para que um só de vós resista um pouco mais
À morte que é de todos e virá
Que tudo isto sabereis serenamente

Sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição
E sobretudo sem desapego ou indiferença
Ardentemente espero. Tanto sangue
Tanta dor, tanta angústia, um dia
Mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga
Não hão de ser em vão

Confesso que muitas vezes
Pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade
Hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam
Quem ressuscita esses milhões
Quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos
Pode dar-lhes aquele instante que não viveram
Aquele objeto que não fruíram
Aquele gesto de amor, que fariam "amanhã"
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
Nos cumpre tê-lo com cuidado

Como coisa que não é só nossa
Que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente
Em memória do sangue que nos corre nas veias
Da nossa carne que foi outra
Do amor que outros não amaram
Porque lho roubaram

                                                       Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988

    

                                                                                      

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